Pele de Tilápia: Do Prato à Medicina, A Revolução do Novo Laboratório da UFC
Quando pensamos em tilápia, o que vem à mente? Provavelmente um filé suculento, temperado no ponto, talvez frito ou assado. É um dos peixes mais consumidos no Brasil, estrela de muitas receitas que celebramos aqui no Receita Sem Fim. Mas, e a pele da tilápia? Na maioria das cozinhas, ela tem um destino certo: o lixo. O que poucos sabem é que essa pele descartada está no centro de uma das maiores inovações científicas do Brasil. Recentemente, a Universidade Federal do Ceará (UFC) inaugurou em Fortaleza um laboratório de ponta dedicado exclusivamente a transformar essa pele em um biomaterial revolucionário, capaz de salvar vidas e mudar o futuro da medicina regenerativa.
A Tilápia na Cozinha: O Desafio da Pele Perfeita
Vamos ser honestos: a pele de peixe divide opiniões. No caso da tilápia, por ser um peixe de água doce, sua pele não é tão celebrada quanto a de um salmão, por exemplo. Muitos cozinheiros amadores preferem removê-la antes do preparo, temendo que ela deixe um gosto residual ou uma textura emborrachada. De fato, conseguir uma pele de tilápia perfeitamente crocante, uma “pururuca de peixe”, exige técnica: ela precisa estar muito seca e ser exposta ao calor intenso e rápido.
Por essa dificuldade, e pela preferência nacional pelo filé limpo, toneladas de pele de tilápia são descartadas diariamente pela indústria alimentícia e em nossas próprias casas. É um subproduto visto como resíduo. No entanto, o que era um problema de descarte na gastronomia se tornou a solução para um problema gigantesco na medicina. A pesquisa cearense enxergou o que ninguém via: um tesouro biológico escondido naquilo que jogávamos fora. Essa mudança de perspectiva é a essência da inovação.
O Milagre Cearense: Como a Pele Virou Curativo
A história que culminou no novo laboratório da UFC começou há cerca de dez anos, no Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos (NPDM) da universidade, em parceria com o Instituto de Apoio ao Queimado (IAQ). A equipe, liderada pelo Dr. Edmar Maciel, buscava uma alternativa barata e eficaz para o tratamento de queimaduras graves. Os tratamentos tradicionais, como curativos de gaze ou a pele de porco (importada e cara), eram dolorosos e caros.
A ideia de usar a pele da tilápia surgiu como uma epifania sustentável. O Ceará é um dos maiores produtores de tilápia do país. A pele do peixe era abundante, barata e, o mais importante, ia para o lixo. Após rigorosos processos de limpeza, esterilização e armazenamento, os pesquisadores começaram a aplicar essa pele em pacientes queimados. Os resultados foram impressionantes.
A pele da tilápia adere à ferida como um curativo biológico natural. Ela evita a perda de líquidos, impede a contaminação por bactérias e, o mais incrível, reduz drasticamente a dor do paciente. Além disso, ela não precisa ser trocada diariamente como as gazes, diminuindo o trauma do tratamento. A pele do peixe simplesmente fica ali, transferindo seu colágeno para o paciente, até que a pele humana se regenere por baixo dela.

- (Foto: Vicktor Braga/UFC)
A Ciência por Trás da Pele: O Poder do Colágeno
Mas por que, exatamente, a pele da tilápia funciona tão bem? A resposta está em sua composição. A pele deste peixe possui uma quantidade extraordinária de proteínas de colágeno, especificamente o colágeno Tipo 1, em uma estrutura muito similar à da pele humana. Na prática, ela funciona como um “andaime” perfeito para que as novas células da pele do paciente possam crescer e se organizar.
Além do colágeno, a pele da tilápia tem outras vantagens:
- Alta Resistência: Ela é mecanicamente mais resistente que a pele de porco ou até mesmo a pele humana cadavérica, usadas em outros países.
- Baixo Custo: Por ser um subproduto da indústria alimentícia, o custo de obtenção é quase nulo.
- Abundância: O Brasil produz milhares de toneladas de tilápia, garantindo um suprimento constante.
- Segurança: O processo de esterilização (que antes era químico e agora será modernizado) elimina qualquer risco de transmissão de doenças do peixe para o humano.
O sucesso foi tão grande que a técnica cearense ganhou o mundo, sendo usada não apenas para queimaduras, mas também em cirurgias reconstrutivas (ginecológicas, urológicas), em odontologia (para enxertos de gengiva) e até na medicina veterinária, para tratar animais feridos.
O Novo Laboratório: O Futuro da Regeneração da Pele
A inauguração do “Laboratório de Pesquisa e Desenvolvimento de Biomateriais e Bioengenharia de Tecidos” (LBBT) na UFC, que ocorreu no último dia 31 de outubro, é o próximo capítulo dessa saga. Com 120m² e um investimento de R$ 2,5 milhões, este não é apenas um espaço para continuar o que já era feito; é uma plataforma de lançamento para o futuro.
O objetivo do LBBT é ir além do curativo. A equipe agora vai produzir novos biomateriais derivados da pele da tilápia. Estamos falando de:
- Pós cicatrizantes: Para feridas mais simples.
- Hidrogéis: Para aplicações dermatológicas e estéticas.
- Curativos compostos: Para diferentes tipos de lesões.
Uma das maiores inovações do novo laboratório será a mudança no processo de esterilização. Eles deixarão de usar o método químico (com glicerina) para adotar o Processamento por Alta Pressão (HPP), uma tecnologia limpa que preserva ainda mais as propriedades biológicas da pele. Isso coloca o Ceará e o Brasil na vanguarda mundial da bioengenharia de tecidos, transformando a pele de um peixe comum em produtos médicos de altíssimo valor agregado.
Conclusão
A jornada da pele da tilápia, de resíduo de cozinha a esperança médica, é uma das histórias de inovação mais inspiradoras do nosso tempo. O novo laboratório da UFC é a prova de que a ciência brasileira é capaz de criar soluções geniais, sustentáveis e de impacto global. Para nós, do Receita Sem Fim, esta notícia serve como um lembrete poderoso: a inspiração pode estar em qualquer lugar, até mesmo naquilo que descartamos. A pele que não usamos em nossa receita pode ser o ingrediente principal em uma receita que salva vidas.