Imagem: Divulgação/Zencrane Filmes
Hoje, aqui no CineGourmet, nós não vamos falar de um filme fofinho, de uma comédia romântica ou de um drama inspirador. Vamos falar de uma obra-prima. E, como muitas obras-primas, ela é crua, é suja, é brilhante e é 100% brasileira.
Vamos falar do filme que, na minha modesta opinião, é o maior filme de gastronomia já feito no Brasil (e um dos melhores do mundo). Um filme que tem a coragem de misturar fome, poder, sexo e crime usando a coxinha como ponto de partida.
Onde Assistir?
O Poder da Coxinha Perfeita
Lançado em 2007 e dirigido por Marcos Jorge, (que tem o subtítulo genial “Uma História de Poder, Sexo e Culinária”) é um filme que te pega pelo olfato e não te solta mais. É um drama com pitadas generosas de comédia de humor ácido (bem ácido), que conta a ascensão e queda — e ascensão de novo — de um homem improvável.
Este não é um filme sobre a beleza da comida, como vimos em A Festa de Babette. Este é um filme sobre a função da comida. O filme nos apresenta a Raimundo Nonato (João Miguel), um migrante nordestino que chega a São Paulo sem nada, exceto uma habilidade inata: ele sabe cozinhar. E, num mundo dividido entre “os que comem” e “os que são comidos”, Nonato descobre que quem controla o fogão, controla o poder.
Uma Receita de Duas Partes
A genialidade do filme começa em sua estrutura. O roteiro não é linear. Ele nos conta duas histórias de Nonato ao mesmo tempo, e nós vamos montando o quebra-cabeça:
- O Passado (Ascensão): Vemos Nonato chegando em São Paulo, faminto e ingênuo. Ele consegue um emprego de faxineiro num boteco de quinta categoria (o “Boteco do Zulmiro”). Lá, seu talento para fazer coxinhas perfeitas é descoberto. Isso o leva para a cozinha de um restaurante italiano sofisticado, o “Boccaccio”, onde ele é treinado pelo chef italiano Giovanni (Carlo Briani) e aprende os segredos da alta gastronomia. Paralelamente, ele inicia um relacionamento tórrido (e faminto) com a prostituta Íria (Fabíula Nascimento).
- O Presente (A Prisão): Vemos Nonato, agora mais magro e endurecido, em uma cela de prisão superlotada. A cela é dominada por Bujiú (Babu Santana), o “chefão” violento. Neste novo “reino”, Nonato percebe que a hierarquia é a mesma, e ele precisa usar seu talento culinário para sobreviver e escalar a cadeia de poder da prisão.
A grande pergunta que o filme nos faz o tempo todo é: O que diabos Nonato fez para sair do restaurante chique e ir parar na cadeia? O filme guarda essa resposta para um final absolutamente espetacular.
Análise Crítica: Os Ingredientes de uma Obra-Prima
É um prazer fazer essa analise, porque todos os seus ingredientes funcionam em harmonia.
- Roteiro: O roteiro (escrito por Lusa Silvestre, Marcos Jorge, Cláudia da Natividade e Fabrizio Donvito) é, sem exagero, um dos roteiros mais inteligentes e bem amarrados do cinema nacional. A estrutura não-linear é o ponto-chave. Ela não é gratuita; ela serve para criar um suspense crescente e para comparar diretamente as duas “selvas”: a cidade (o capitalismo, o restaurante) e a prisão. Em ambos os lugares, Nonato usa a comida para subir na vida. O roteiro é uma fábula. É uma história clássica sobre poder, mas contada de um jeito visceral e brasileiro. O texto é cheio de ironia, e a forma como a comida e o sexo se misturam (Íria só se interessa por Nonato quando ele começa a “cheirar a comida boa” e a levar iguarias para ela) é uma metátese brilhante.
- Atuações: Estamos falando de um dos maiores elencos já reunidos no cinema brasileiro.
- João Miguel (Nonato): O que João Miguel faz aqui é de outro planeta. Ele é o coração do filme. No passado, ele é ingênuo, seus olhos brilham com cada descoberta (a primeira taça de vinho, o queijo parmesão). No presente (prisão), ele é frio, calculista, magro. Seu olhar mudou. Ele é duas pessoas diferentes, e a transformação é totalmente crível. Ele é o “anti-herói” perfeito; você torce por ele mesmo sabendo que ele está moralmente se corrompendo.
- Babu Santana (Bujiú): Antes de ser o “Paizão” do BBB, Babu já era um gigante da atuação. Bujiú é a força bruta, o “rei” da cela que comanda pelo medo. Mas até ele, o mais forte, é subjugado pelo estômago. A relação dele com Nonato é uma aula de tensão.
- Fabíula Nascimento (Íria): Ela é a personificação da “fome” em todos os sentidos. Ela tem fome de comida, de sexo, de vida. É uma femme fatale de boteco, e sua química com João Miguel é, literalmente, de dar água na boca.
- Carlo Briani (Giovanni): O chef italiano é o mentor de Nonato. Ele é sofisticado, mas também cansado. A relação mestre-aprendiz entre ele e Nonato é um dos pilares do filme, e é através dele que Nonato aprende que “cozinhar é um ato de poder”.
- Direção e Cinematografia: A direção de Marcos Jorge é impecável. Ele sabe exatamente quando ser cru (nas cenas do boteco e da prisão) e quando ser lírico (nas cenas do restaurante italiano). A fotografia de Toca Seabra é um show à parte. O filme cheira. A cozinha do Zulmiro é gordurosa, escura, amarelada. Você quase sente o cheiro de óleo velho. Em contraste, a cozinha do Boccaccio é limpa, branca, iluminada, cheia de ingredientes frescos e cores vibrantes (o vermelho do tomate, o verde do manjericão). E a prisão? A prisão é cinza, azulada, fria. O filme usa a paleta de cores para nos dizer exatamente onde estamos na escala social.
- Trilha Sonora e Edição: A trilha sonora (de Giovanni Venosta e Ersilia Prosperi) é sutil e pontual, muitas vezes usando músicas clássicas italianas de forma irônica. Mas o grande trunfo técnico é a edição (de Luca Alverdi). A forma como ele corta de uma timeline para outra é genial. Um exemplo: Nonato está aprendendo a cortar carne no restaurante italiano; corta para ele na prisão, usando uma faca improvisada com uma precisão assustadora. A edição constrói a narrativa e o suspense de forma magistral, fazendo o filme ter um ritmo que nunca se perde.
Posicionamento: A Fábula do Poder
Como seu amigo aqui do CineGourmet, eu preciso te dizer por que é tão genial e por que ele é muito mais do que um “filme de comida”.
O filme é uma fábula cruel sobre a sociedade. A tese central é: “Existe o homem que come e o homem que é comido”. Ponto.
Nonato chega em São Paulo como o “comido”. Ele é o faxineiro, o último da fila. Ele é ingênuo. Ao aprender a cozinhar, ele aprende a seduzir, a manipular, a controlar. Ele percebe que o homem que faz a coxinha é mais importante que o dono do bar. Ele percebe que o homem que tempera a comida do chefão da cela é mais importante que o próprio chefão.
A comida no filme é a metáfora mais antiga e poderosa para o poder. Nonato não dá comida, ele distribui favores. Ele concede o prazer. Na prisão, ele faz um banquete digno de um rei com os ingredientes mais nojentos, e os outros presos o tratam como um deus. Ele vira o “Chef”.
O filme é uma jornada sombria sobre como a inocência é devorada pelo sistema. Nonato não é mau por natureza; ele é um sobrevivente que aprendeu as regras do jogo. E o jogo é definido pelo estômago. O filme nos mostra que, no final das contas, o homem mais poderoso não é o mais forte (Bujiú) ou o mais rico (o dono do restaurante), mas aquele que sabe satisfazer o desejo mais básico e incontrolável de todos: a fome. E o final… ah, o final. É um dos finais mais irônicos, sombrios e absolutamente perfeitos do cinema.
Conclusão: Um Prato Principal Inesquecível
Não é só um filme, é uma experiência. É uma obra-prima que te faz rir, te choca e te faz pensar por dias.
- Pontos Fortes: O roteiro, que é uma peça de relógio de tão perfeito; a atuação monumental de João Miguel; a direção de arte que te faz sentir os cheiros; e um final que é uma das maiores reviravoltas do cinema nacional.
- Pontos Fracos: Sinceramente? Nenhum. Para a proposta que ele tem, o filme é impecável. (Ok, se você for muito sensível, algumas cenas podem ser um pouco fortes, mas nada gratuito).
Vale a pena ser assistido? É OBRIGATÓRIO.
É o filme perfeito para quem quer ver o cinema brasileiro no seu melhor. É para quem gosta de humor inteligente, de roteiros que fecham sem pontas soltas e para quem entende que a gastronomia pode ser, sim, uma arma letal.